Caos na rua

O evento

Refeitório de uma empresa. Buffet com opções de carnes, saladas e grãos. Colegas de trabalho conversam sobre o cotidiano.

“Viram o Sálvio hoje?” pergunta Valentina.

Tales responde:

“Ele estava em reunião com você hoje, né Pedro?”

“Não comigo,” responde Pedro.

“Será que ele não veio hoje de novo?” — Tales.

Um gordinho suado, estatura média, entra esbaforido no refeitório. Sem se importar com a ordem do buffet, intromete-se no meio da mesa de saladas e dana a encher o prato. Rapidamente faz uma montanha verde, laranja, vermelha e amarela. Esse é Sálvio. Grita a seus colegas:

“Desculpe, gente! Tive problemas no trânsito hoje.”

Os colegas sorriem, mas não respondem. Valentina esboça uma resposta: apenas um murmuro.

Sálvio troca o buffet de saladas pela mesa. No caminho, passa ao lado dos colegas; aponta em qual mesa irão sentar.

Quando Valentina, Tales e Pedro sentam-se na mesa designada, a montanha colorida já está notavelmente menor. Sálvio toma um gole de água e se lamenta:

“O trânsito foi complicado. Estou até sem vontade de comer.”

Os três colegas se entreolham.

Pedro é casado. Tem uma filha de 10 anos, que é o amor de sua vida. Ele costuma ter pouca paciência para pessoas do trabalho. São apenas colegas. Antes de se sentar ele já havia perdido o interesse em Sálvio. Encara seu celular; pesquisa por brinquedos para o aniversário da filha, que se aproxima.

Tales está muito cansado da noite anterior. Ele passou a madrugada lendo sobre o uso de talheres no Japão. Por mais que ele gostasse, essa atividade noturna não impede a chegada do dia seguinte. Com a mente em origamis e desenhos japoneses, deu mais uma garfada.

Valentina anda meio decepcionada com a sua vida. Ela queria ter um belo carro importado, uma casa com vista para o mar e um marido que a amasse. Ela só conseguiu uma dessas três coisas, mas não sabe qual. Para evitar descobrir, mantém-se ocupada com a vida alheia:

“O que aconteceu? Trânsito muito parado?”

“Antes fosse.” Sálvio respondeu “O trânsito estava muito rápido. Me diz: o que você faz quando vê um sinal amarelo?”

Tales deixa de sonhar acordado e responde:

“Diminui e para.”

“O que?!” impressiona-se Sálvio “Não! Você tem que acelerar! O sinal já vai fechar!”

Nenhum dos três esboçam uma resposta. Continua:

“Um doidinho atravessou a faixa, mas o sinal estava fechado para ele! Ele atravessou a faixa com sinal fechado. Não tive tempo de frear…” mais uma garfada na salada.

Tales pensou um pouco e perguntou:

“Você avançou o sinal vermelho?”

Pedro, entre um carregamento de página e outro, ouviu a história. Por hora, ele travou o celular e presta atenção na história do motorista apressado.

Ignorando a pergunta de Tales, Valentina pergunta assustada:

“Caraca! Você atropelou o cara?”

“Não pude evitar. O moleque entrou na frente. Aí teve ambulância, veio polícia. Acabei ficando para prestar socorro, por isso demorei.”

Pedro pergunta:

“Quantos anos tinha o menino?”

Sálvio ignora a pergunta e continua com a história:

“Eu já estava correndo. A minha reação foi continuar, né? Eu iria parar mais na frente, mas geral surtou. Nego freou carro na minha frente. Eu desci. Galera socando, chutando o carro. Xingaram muito, mas fiquei de boa. Fui prestar socorro. Não precisei chamar ambulância porque já chamaram.”

Valentina se preocupa:

“E o que aconteceu com o menino?”

“Eu estava a uns 70 por hora. Quando a ambulância chegou ele — não tinha jeito mais.”

Pedro não consegue se distrair da conversa:

“Os pais dele estavam lá?”

“Não. Era menino daqueles de rua, sabe? Ele estava indo fazer malabares.”

Pedro volta os olhos ao celular. Continua navegando na Internet por brinquedos para sua filha.

Com toda essa conversa, Sálvio não reduziu muito o tamanho de sua montanha. Josi, uma colega que trabalha em um andar diferente, senta à mesa:

“Salve Sálvio! Só saladinha hoje?”

“Pois é, Josi. Hoje não quero matar mais nenhum ser vivo.”

“Credo! Virou vegetariano? Planta também é ser vivo!”

“Nenhum animal, então. Não virei vegetariano, mas hoje minha cota já acabou. Acabou a da semana.”

Os três colegas originais se entreolham. Tales comenta com os outros dois baixinho:

“O que ele está falando?”

Valentina sorri sem graça e balança a cabeça negativamente.

“Que história é essa?!” pergunta Josi.

“Jô, você não vai nem querer saber…”

Ansioso por uma mudança de assunto, Tales intervém:

“Vocês sabiam que até o final da segunda guerra o garfo era visto com maus olhos no Japão?”

Valentina sorri:

“Japonês tem que treinar muito a usar pauzinho mesmo!”

Josi gargalha:

“Tamanho não é documento. O importante é saber brincar com o que tem!”

Pedro abre um sorriso. Encontrou um estojo de maquiagem que vai deixar sua filha linda. Compra pelo celular. Será entregue em até 3 dias, diz o site.

Tales termina seu almoço. Valentina também. Sálvio está quase no fim. Pedro ainda tem algumas garfadas restantes. Josi está no começo.

Valentina sugere:

“Vamos nessa? Tenho que resolver umas coisas ainda.”

Tales levanta-se:

“Vamos sim.”

“Eu também estou saindo. Espere aí!” Diz Sálvio logo antes de comer rapidamente o que faltava.

Valentina e Tales se encaram. Os dois sentem-se um pouco melhor por encontrar compreensão no fundo dos olhos um do outro. Sálvio se intromete, como sempre:

“Tenho que correr hoje. Perdi a manhã toda.”

Josie e Pedro continuam sentados. Trocam sorrisos, mas não se falam. Os outros três voltam para suas baias no escritório.

O advogado

Horas mais tarde, Leo convoca Valentina, Sálvio e André para uma reunião. Os três chegam pontualmente, mas nem sinal de Leo. Sálvio inicia a conversa com André:

“Grande André!”

“Fala, meu caro Sálvio.”

Valentina sorri em vão, na expectativa de um cumprimento. A conversa segue só entre André e Sálvio:

“Depois que virou chefe, o Leo pegou essa mania de chegar atrasado, né? Chefe pode.”

André sorri sem graça. Sálvio continua:

“Estou brincando. É muita correria mesmo. Daqui a pouco ele está aí. Mas como anda a família, tudo certo?”

André não entende muito bem a pergunta, mas responde:

“Tudo certo, Sálvio. E a sua família, vai bem?”

“Opa! Bem demais. Um sobrinho meu entrou na UFMG este ano. Já está no segundo semestre de engenharia. O tempo voa! E aquele seu primo do direito? Já formou?”

“Formou sim, ele já até passou na OAB. Está todo feliz.”

“Coisa boa! Ele é advogado? Qual a especialidade dele?”

Valentina fingia participar da conversa até então: olhava para os dois, balançava a cabeça em concordância. Nesse momento, porém, decide abandonar a conversa. Usa seu celular como companhia.

“Ele está trabalhando num escritório criminalista.”

“Interessante. Acho a área fascinante. Uma dúvida que eu tenho. Talvez você saiba me responder. Existe o homicídio culposo e doloso, não é isso?”

“Eu acho que é. Eu não sei muito sobre —”

Sálvio interrompe:

“Acho que um é quando a pessoa tem a intenção de matar e o outro não. Eu fico pensando. Será que o advogado cobra mais em um que no outro?”

“Não sei.”

“Porque se a pessoa não tem intenção, talvez devesse pagar menos para ser defendida, não? Digo, menos do que quem teve a intenção.”

Valentina balança a cabeça, indignada. Entretanto, apenas continua a navegar em seu telefone. André responde:

“Eu realmente não —”

“Gente, desculpa o atraso” — interrompe Leo ao entrar na sala — “fiquei preso em outra reunião.”

“Sem problemas.” Responde Sálvio, vira-se para André e completa: “depois a gente termina este nosso papo.”

A oficina

Às dezesseis horas, Pedro não se lembrava mais do almoço. Em sua mesa, ele conversava com a mulher ao telefone. Ela queria saber a opinião dele sobre qual cor de cortina comprar.

Valentina tinha três chats do Facebook abertos. Só sabia quem era uma das pessoas, mas não lembrava qual.

Sálvio desceu para a copa, onde Tales e Fernanda discutiam planos para o fim de semana. Tales estava pensando em ir ao teatro, mas Fernanda preferia o cinema. Sálvio intromete-se:

“Eu gostaria muito de pegar um cineminha com vocês no fim de semana, mas não vou poder.”

Os dois se animam com a conclusão da frase. Fernanda arrisca:

“Por que você não pode?”

“Acho que este fim de semana vou ter que lavar meu carro. Além disso, tem um amassadinho que preciso consertar.”

Tales toma um gole do café e começa uma crise de tosse. Fernanda pergunta:

“Está muito amassado? Eu conheço um martelinho de ouro muito bom.”

“Mesmo? Pode me passar o contato dele? Eu não estou muito satisfeito com meu mecânico. Queria levar o carro em outro lugar desta vez.”

Tales, ainda tossindo, balança, rapidamente, a cabeça para os lados. Grita com os olhos: não! não!

“Claro!” Fernanda digita no celular “Está aí no seu Whatsapp.”

“Obrigado, Fê!”

“Eles também lavam o carro. Você pode levar do jeito que está e vai ficar com o carro prontinho.”

“Bom saber, mas acho que vou lavar eu mesmo.”

Sálvio pega um café, despede dos dois e volta para sua baia. Tales se recupera da tosse e respira normalmente. Fernanda comenta:

“Está tudo bem, Tales?”

Ele balança a cabeça afirmativamente. Ela continua:

“Vou lá em cima trabalhar um pouquinho, ok? Bebe uma água.”

Diz sim balançando a cabeça e acena com a mão. Quando ela deixa a copa, ele suspira.

A suspeita

Alguns minutos depois Valentina aparece na copa:

“Que bom que você está aqui! A gente precisa falar sobre essa história do Sálvio!”

Tales ainda não saiu:

“Nem me fale. Vou chamar o Pedro…”

Ela balança a cabeça dizendo sim, mas ela quer dizer não. Ela já prevê o que acontecerá. Tales escreve no celular “Pedro, desce para copa. URGENTE!”

Alguns minutos depois ele aparece na copa. Não parece muito preocupado. Ele já imagina o que se segue. Tales começa:

“É sobre o Sálvio! A gente precisa —”

“Olha, eu não sei de nada. Não quero saber de nada. Não vou me meter em confusão de Sálvio.” Pedro desceu para dizer isso. Ao final de seu discurso já estava com o pé no primeiro degrau da escada.

Enquanto Pedro vai embora da copa, Valentina olha para Tales e diz:

“Não sei porque você ainda insiste com o Pedro…”

Tales:

“Eu achava importante todos nós conversarmos.”

Valentina diz o que queria ter dito há dez minutos:

“O que a gente faz?”

“Não sei, Val. Não sei mesmo.”

“A gente tem que fazer alguma coisa! Será que a gente vai à polícia?”

Tales:

“Fazer o que na polícia? A gente não é testemunha. Ele só nos contou uma história. A gente nem sabe se é verdade.”

Valentina:

“Isso! Não sabemos a verdade! E se ele fugiu? E se não prestou socorro?”

Tales:

“E se ele nem atropelou ninguém? E se foi só uma estória para justificar o atraso?”

Valentina:

“Acho que ele atropelou sim. Ele estava com um papo muito estranho com o André mais cedo.”

Tales:

“Que papo?”

Valentina:

“Umas coisas meio sem noção. Ele queria que o sobrinho do André o representasse.”

Tales:

“Representasse aonde?”

Valentina:

“Não sei. Ele vai ser processado, né?”

Tales:

“Ele estava falando sobre lavar o carro e consertar um amassado agora pouco também…”

Valentina:

“Pois é. Acho que se ele tivesse ficado lá mesmo não teria chegado para o almoço. Não daria tempo.”

Tales:

“Pode ser. Não sei como funcionam essas coisas.”

Valentina:

“Vamos à delegacia. A gente conversa sobre isso lá.”

Tales:

“Não quero ficar envolvendo polícia. Isso pode acabar sobrando para gente.”

Valentina:

“A gente tem que ir à polícia, Tales. Pode não ser perfeito, mas é o recurso que a gente tem. Nós temos que usá-lo.”

Tales:

“Por que a gente não procura saber se ele está em algum processo? Se a gente for à delegacia, vamos no máximo fazer um BO, e aí? Como isso vai parar no processo?”

Valentina:

“Isso é responsabilidade deles, Tales. A gente tem que reportar.”

Tales:

“E que horas a gente vai lá? Hoje vai ter futebol da galera daqui e está com o número exato de pessoas…”

Valentina:

“Vamos amanhã, então.”

Tales:

“É… Amanhã a gente vê isso.”

A manhã

No dia seguinte, Valentina chega antes das nove. Não há ninguém nas baias. Ela olha a baia de Sálvio. Tudo normal. Pensa em abrir uma de suas gavetas, mas e se alguém chegar na hora que ela estiver fuçando? O que estará lá de toda forma? Ela aperta qualquer tecla no teclado. O monitor passa a exibir a proteção de tela com uma janela para senha. Ela digita: “valentina”. A senha é recusada.

Ela volta para a sua baia. Ninguém chega até nove e meia. Às dez horas Tales chega. Conversa com André, que já está em sua baia nesse horário:

“Fala artilheiro!”

André:

“Vou chegar no gol mil, rapá.”

Tales:

“Você vai viver mil anos, então.”

Valentina encara Tales; ele percebe. Termina o papo rapidamente:

“Deixa eu ir trabalhar, André. O dia hoje promete.”

Ele senta em sua baia e começa a digitar com os olhos fixos na tela.

Valentina manda uma mensagem para Tales:

“Vamos na hora do almoço?”

Tales percebe a notificação em seu computador, mas demora vinte minutos para responder. Durante esse tempo parece concentrado no computador, mas está focado na resposta da pergunta que nem leu ainda. Ele responde:

“Acho que hoje não vai ser um dia bom. Estou muito atarefado hoje. O Bernardo está de férias…”

Não se falam mais até a hora do almoço.

O boletim de ocorrência

Sálvio chega atrasado novamente. Adentra o refeitório pedindo desculpas como de praxe. Dessa vez ele se senta com Rose e Fernanda. Pedro prefere almoçar sozinho em um restaurante fora do escritório. Valentina e Tales sentam-se juntos. Valentina começa:

“Eu vou à polícia hoje.”

“Não acho que você deveria ir sozinha. Vamos amanhã?”

“No sábado?”

Tales:

“É… Eu vou com você sábado à tarde.”

“Eu vou hoje, Tales. Amanhã eu vou sair com o Carlos.”

“Hoje eu não vou.”

Valentina:

“Não precisa ir.”

Eles não trocam muitas palavras durante o almoço. Valentina termina o almoço correndo:

“Estou indo lá.”

Tales reclama:

“Você não pode esperar até amanhã, né? Então vai.”

Valentina vai embora sem responder nada.

Chegando à delegacia ela é educadamente atendida por um policial:

“Boa tarde, senhora.”

“Eu gostaria de registrar um BO.”

“O que roubaram, senhora?”

“Não é nada disso. Um colega de trabalho disse que atropelou alguém. Quero registrar isso.”

“Ele disse que atropelou e fugiu?”

“Não. Ele falou que ficou lá prestando socorro. Que falou com a polícia…”

“Então o que a senhora gostaria de registrar?”

“Eu acho que ele pode estar mentindo.”

Com um sorriso, o policial comenta:

“A senhora quer fazer um boletim de ocorrência porque acha que seu amigo está mentindo?” enfatiza a palavra amigo.

Valentina fica visivelmente alterada. Pensa em xingá-lo, mas se controla:

“Eu só quero registrar um BO. Posso fazê-lo ou não?”

O policial, impaciente, responde:

“Qual o tipo de boletim de ocorrência?”

“Homicídio.”

Com um sorriso irônico o policial responde:

“Você viu um homicídio ou participou de um?”

Valentina, impaciente:

“Não. Como eu disse, acho que um colega de trabalho pode estar envolvido.”

O policial finge só ter entendido agora:

“Ah! A senhora quer, então, fazer uma denúncia de homicídio?” — enfatiza a palavra denúncia.

Valentina, já completamente tomada pela raiva, diz duramente:

“Sim!”

O policial pergunta, ainda sem levar o caso a sério:

“Qual o nome da vítima?”

“Eu não sei. Foi uma criança moradora de rua.”

O policial gargalha:

“E o nome completo do suspeito?”

Valentina liga o celular. Precisa procurar o nome completo de Sálvio na página da empresa que trabalha. O policial, impaciente, pergunta:

“Então, minha senhora, sabe ou não sabe?”

Nesse momento entra um jovem com cara de quem viu fantasma. Ignora a presença de Valentina, porque ignoraria qualquer presença. E diz:

“Eu acabei de ser assaltado!”

O policial olha para o jovem e diz:

“Espere um pouco que a senhorita aqui ainda está procurando o nome de um assassino na Internet.”

O jovem, trêmulo, fica calado, olhando Valentina. O policial vira-se para ela:

“Você sabe que, diferente de mentir para namorada, mentir para polícia é crime, né?”

Ela responde, ainda irritada:

“O Sálvio não é meu namorado.”

O policial responde:

“Olha, ele tem nome!”

Com tanta raiva, Valentina mal consegue se concentrar em encontrar o nome de Sálvio. Ainda assim, conseguiu pensar um pouco melhor sobre a situação. Fazer uma denuncia de homicídio? Será que é isso mesmo? Ela começa a achar a acusação muito pesada. O jovem assustado que a olha dá um senso de urgência. Ela decide abandonar a ideia:

“Vou procurar o nome dele no sistema lá da empresa e volto.”

O policial responde ironicamente:

“Boa ideia, senhora! Estamos aqui só para atendê-la.”

Ela sai da delegacia soluçando de raiva. Resolve caminhar um pouco antes de voltar ao escritório.

A briga

Valentina volta às dezesseis horas e vai direto para copa. Tales está sozinho, mexendo no celular. Ela começa:

“Foi horrível na delegacia!”

Tales diz com o orgulho de estar certo:

“Te disse!”

Valentina:

“Disse o que?! Você não quis ir.”

Tales:

“Você não podia esperar um dia para ir!”

Valentina exalta-se:

“Esperar um dia?! Você não queria ir e não iria no sábado também!”

Tales:

“Como você sabe disso? Lê mentes agora?”

Valentina pega a garrafa de café e diz:

“Já tive um dia complicado. Quero só tomar um café e ir trabalhar, ok?”

Tales:

“O que rolou lá?”

Valentina:

“O policial foi super escroto comigo. Não me levou a sério.”

Tales:

“Você não devia ter ido sozinha. Era melhor eu ter ido com você.”

Valentina indigna-se:

“Por que eu não posso ir sozinha?”

Tales não responde. Pensa um pouco e diz:

“Acalme-se, você está muito agitada.”

Uma irritação sobe pela espinha e levanta todos pelos do corpo de Valentina. Ela olha para Tales de uma forma que ele nunca a viu antes. Derrama café na xícara e sobe para sua mesa.

A carona

Enquanto Valentina e Tales brigavam na copa, Sálvio conversava com André. Ao sentar em sua baia, Valentina ouve a conversa dos dois.

Sálvio comenta:

“Uma coisa que queria te perguntar, André. Posso vir de carona com você?”

André espanta-se:

“Ué, mudou de ideia?”

Sálvio:

“É. Acho que é melhor assim. Nós moramos do lado um do outro. Não tem porque cada um ir em um carro separado. Assim a gente economiza com gasolina e estacionamento. Rola?”

André:

“Pode ser, Sálvio. Hoje no carro estamos eu e a Fernanda, você pode entrar no rodízio também.”

Sálvio surpreende-se:

“No rodízio?!”

André:

“É. A gente reveza os carros. Cada dia em um. Assim simplifica as coisas. Ninguém tem que pagar nada.”

Sálvio:

“Ah… Eu achava que era sempre no seu carro.”

A Patrícia do RH chega na baia de André:

“Aí está você, Sálvio. Precisamos conversar sobre suas férias.”

Ele diz para André:

“Depois a gente combina melhor sobre essa carona.”

André diz que sim com a cabeça. Sálvio segue Patrícia para a sala do RH.

A casa de Pedro

Bem branquinha e com o corpo um pouco mais cheio. Uma beleza clássica que já não se valoriza como antes. Essa é Tereza, a esposa de Pedro.

Está sentada em um sofá na sala de estar de uma casa geminada em um bairro residencial. Como a casa ao lado está desocupada — e esteve assim desde que o casal comprou a casa — há pouco barulho nas redondezas. A garagem fica ao lado da sala, mais ao fundo ficam os dois quartos: a suíte do casal e o quarto de Alice, a filha. Todos os cômodos limpos, como se estivessem esperando a chegada de um príncipe.

Ao final da tarde de sexta-feira, Tereza conversa com uma amiga no telefone:

“Está ótimo, amiga. As novas cortinas acabaram de chegar. Estão lindas!”

Depois de ouvir a resposta da amiga, Tereza continua:

“Claro! Venha ver sim!”

Ouve-se o barulho de um carro entrando na garagem. As luzes dos faróis fazem reflexo na parede da sala. Tereza interrompe a amiga no telefone:

“Amiga! Amiga! Vou desligar, Pedro acaba de chegar.”

Enquanto Pedro desliga o carro, Tereza continua no telefone:

“Vamos sim! Vamos sim! Um beijo! Tchau!”

Pedro entra pela porta da frente com voz de cansaço:

“Oi 'mor.”

“Oi querido! Como foi o dia hoje?”

“Aquela coisa de sempre, 'mor.” Responde Pedro com timbre de suspiro.

Ele segue direto para a cozinha. Tereza protesta:

“Nada disso! Quero meu beijo!”

Pedro volta atrás e beija, rapidamente, sua mulher nos lábios. Alguns minutos mais tarde Alice chega correndo de seu quarto:

“Papai! Papai!”

Abraça o pai no meio da barriga. Pedro diz com ar de graças:

“Oi filhinha! Como você está mocinha? Já fez seu para-casa?”

A menina sorri e olha para cima, com o queixo colado no estomago do pai:

“Fiz tudinho, papai!”

O pai desfaz o abraço da filha, ajoelha-se e beija-lhe a testa:

“Parabéns, filhinha! O papai quer ver o seu dever de casa.”

Tereza se intromete:

“Mas antes a Alice tem que tomar banho, não é Alice?”

Alice balança a cabeça afirmativamente e diz um “sim” sapeca. Ela vai correndo para o banheiro.

Pedro continua até a cozinha. Tereza o segue. Ele diz:

“Nossa filha é uma graça, não é?”

Ela não responde, apenas sorri e faz um carinho no braço dele. Ela diz arrastado:

“'Mor, combinei com o Gabriel para ele vir aqui no sábado.”

Com o braço livre, Pedro abre a geladeira e tira uma caixa de leite. Ele suspira e diz para à esposa:

“De novo?”

Ela responde:

“Tem quase um mês desde a última vez que ele veio.”

Pedro pega um pacote de biscoitos do armário. Enche um copo de leite. Guarda o leite de volta na geladeira. Só depois da primeira mordida no biscoito ele responde:

“Seus pais passaram o fim de semana passado todo com a gente.”

Tereza dá uma risadinha e diz:

“Meus pais não são meu irmão, 'mor. Quero passar um tempo com o maninho também.” Alisa Pedro nas costas.

“Eu sei, 'mor, mas a gente tem que passar um tempo sozinhos também, né?”

“Claro! Domingo vai ser só nós 3! Só no sábado a tarde que ele vai estar aqui!”

Pedro toma um gole do leite. Olha para Tereza e morde mais um pedaço do biscoito. Tereza pergunta:

“O que foi, 'mor?”

“Nada.” — responde o marido.

“Vamos, Pedro! O que foi?” — insiste a esposa.

“A gente devia ter conversado sobre isso antes de você chamá-lo.”

Tereza tira a mão das costas do marido e se defende:

“Eu estava conversando com ele no telefone e a gente acabou combinando. Não foi planejado. A gente foi conversando e combinou.”

Pedro, sem muita paciência, argumenta:

“Custa falar que vai conversar comigo antes?”

Tereza responde, incomodada:

“Mas eu falei com ele que iria conversar com você!”

Pedro toma mais um gole do leite e diz:

“Do jeito que você me falou não parecia. Pareceu que você combinou com ele sem me avisar.”

Tereza fecha a cara:

“Te avisar? Eu preciso te avisar para combinar de passar um sábado a tarde com meu irmão?”

Pedro, sem paciência, responde:

“Seria bom sim!”

Tereza ironiza:

“Ah tá! Bom saber! Você me dá permissão de ir ao banheiro agora?”

Pedro não responde nada. Ela, pisando duro, vai ao banheiro da suíte. Ele coloca o copo sujo de leite na pia. Deixa o pacote de biscoitos aberto em cima da mesa da cozinha e vai para sala assistir TV.

Cinema com amigos

Às duas horas da tarde de sábado, Tales chega no refeitório do Shopping. Lá encontra Fernanda e André terminando o almoço. Quando Tales chega eles surpreendem-se:

“Achei que não viria mais!”

Tales se desculpa pelo atraso e senta-se à mesa. Fernanda diz:

“O filme é daqui quinze minutos, Tales! Vai lá comprar seu ingresso!”

Tales protesta:

“Não compraram o meu?”

André responde:

“A gente achou que você não viria! Tentamos ligar no seu celular, mas só deu ocupado.”

Tales se ofende pela falta de consideração, mas não diz nada a respeito. Responde que tudo bem. Levanta-se e vai para a fila do ingresso. Quando ele já está de pé, Fernanda comenta:

“A gente já está indo, só pagar aqui. Tudo bem, Tales?”

Ele se sente um pouco melhor, balança a cabeça e vai para a fila.

Faltando cinco minutos para o filme ele termina de comprar o ingresso. No hall do cinema, ele vê André e Fernanda se aproximando. Tira foto dos ingressos e coloca no Facebook “Cinema com amigos no sábado.” Ele referencia André e Fernanda na entrada do Facebook. Porém, André não aceita a referência.

“Será que nesse filme vai ter o Klarg?” — pergunta Fernanda.

“Acho que vai ser só no terceiro. Pelo menos no livro ele aparece quase no fim.” — responde André.

Fernanda continua:

“Espero que esse seja tão bom quanto o anterior! Não vi nada sobre este filme! Você já leu os outros livros ou só os da trilogia, André?”

Ele responde que já leu todos. Tales não viu o primeiro filme e nunca leu os livros.

Eles caminham para dentro da sala, encontram lugares para os três. Fernanda e André ficam nos dois assentos exatamente no centro da sala. Ao lado esquerdo de Fernanda há uma senhora solitária. Ao lado direito de André não há ninguém, apenas Tales.

Depois das duas horas e meia de filme, os três saem empolgados. Fernanda comenta:

“Acho que aquela sombra no final do filme era do Klarg!”

“Curti aquela porradaria dos Vultres contra, qual é mesmo o nome?” — pergunta Tales em entonação animada

“Impossível! Acho que aquele era o Klun!” — diz André.

“Vamos ver no próximo filme.” — responde Fernanda — “O Klun está na prisão!”

André:

“Mas ele foge da prisão e vai ajudar a Char!”

Fernanda:

“Mas ele só foge porque o Klarg usa um feitiço nos guardas!”

André fica pensativo. Tales muda de assunto:

“Por que você não aceitou minha referência no Facebook, André?”

André:

“Eu não gosto de ficar colocando a minha vida no Facebook.”

Fernanda:

“Eu coloco tudo. Você é muito preocupado com essas coisas, André!”

André:

“Não é preocupação; é precaução. Eu não ganho nada com os outros sabendo que eu fui no cinema, mas perco minha privacidade.”

Fernanda ri e bagunça o cabelo de André com a mão, que dá uma pequena corrida para frente.

Tales:

“O Sálvio falou umas coisas estranhas para mim outro dia.”

Fernanda reclama:

“Ah! Não vamos falar de Sálvio. O sábado está muito bom para ficar conversando sobre ele.”

André concorda:

“Arrependi de tê-lo convidado a vir com a gente de carona no início do ano. Ele já veio com papo ontem de querer carona, mas acho que desistiu.”

Tales pergunta:

“Por que desistiu?”

André:

“Quando disse que era rodízio, ele desconversou. Acho que ele queria que eu fosse motorista dele e, conhecendo bem a peça, provavelmente não pagaria nada também.”

Fernanda pergunta:

“O que vocês estão pensando em fazer agora?”

André:

“Estou cansado. Estou pensando em ir para casa mesmo.”

Fernanda faz um biquinho e diz:

“Eu tenho que estudar para minha aula de Japonês. Vamos embora, então.”

Tales vai embora em seu carro. André dá carona para Fernanda. Os dois moram no mesmo prédio, mas em apartamentos diferentes.

Valentina e Carlos

“Ele disse com toda convicção do mundo: as pirâmides foram construídas por extraterrestres.” — explica uma moça na mesa de um restaurante de carnes. Ela é magra com feições pontiagudas.

Um homem de vinte e poucos anos, um pouco mais velho que a magra, pergunta:

“Como ele pode saber isso? Que evidência esse povo tem?”

A moça responde:

“Exatamente! Como eles podem ter tanta certeza?! Não acho que ele esteja mentindo. É muita convicção! Dá para ver nos olhos! Foi aí que eu percebi uma coisa.”

O homem curva-se para frente e intriga-se:

“O que?!”

Ela olha para os lados, inclina-se para frente e, em tom de segredo, confessa:

“O motivo — quer dizer, só tem um jeito de ter tanta certeza: ele mesmo é um alien!”

Homem:

“Como assim?”

Mulher:

“Ele tem toda essa certeza que os extraterrestres fizeram isso… Só um extraterrestre teria tanta certeza!”

Homem:

“Meu Deus! É óbvio!”

Adentra a recepcionista do restaurante seguida de Valentina e Carlos, seu noivo. Eles não prestam atenção nas conversas que acontecem à sua volta. Valentina, apressada, diz a Carlos:

“Adoro este lugar. Aqui tem a melhor picanha da cidade, não acha?”

Carlos, que ficou um pouco para trás, não ouve muito bem:

“O que?”

A recepcionista aponta uma mesa. Valentina pergunta:

“O que você acha desta, Carlos?”

Carlos, ainda um pouco atrás, aperta o passo. Ele esbarra na cadeira da magricela, pede desculpas, olha a mesa designada e responde:

“Está ótima.”

Valentina:

“Achei muito perto da porta.” — aponta para uma mesa no fundo do salão — “Pode ser aquela?”

A recepcionista gesticula que sim. Os três seguem. Assentam-se. Cardápios entregues. Valentina mal folheia:

“Já sei o que eu quero!”

“O que?” — pergunta Carlos.

“A picanha!”

Carlos:

“Ah não! Vou querer frutos do mar.”

O garçom volta. Pedem bebidas: Carlos pede uma cerveja e Valentina um suco. Fazem os pedidos logo em seguida. O garçom traz o que beber e o que beliscar. Enquanto esperam o prato, um pequeno silêncio surge. Valentina suspira e começa:

“Então, Carlos. Não sei o que faço sobre o Sálvio.”

Carlos:

“Achei um pouco estranho a história da carona também.”

Valentina:

“O que eu faço, Lô?”

Carlos:

“Acho que você deveria conversar com ele. A gente não achou nada no jornal… Enfim, nem sabemos se houve mesmo o acidente ou não. Questione. Uma hora ele vai se enrolar.”

Valentina pondera:

“Você acha? O Tales acha que eu deveria deixar para lá.”

Carlos franze a testa:

“O Tales?! Ele é muito sem iniciativa. A história do Sálvio está te incomodando, não está?”

Valentina concorda com a cabeça. Carlos complementa:

“Então fale com o Sálvio. Tire isso da sua cabeça!”

Valentina está pensando na briga que teve com Tales:

“Às vezes as pessoas são tão difíceis, né?”

Carlos acha que ela está falando sobre Sálvio:

“Nesse caso nem é dificuldade. Ele pode ter cometido um assassinato!”

O garçom chega com os pedidos. Valentina alegra-se:

“Hmmm… Essa picanha está com uma cara deliciosa!”

Carlos sorri:

“Não venha pegar do meu prato de frutos do mar!”

Os dois continuam elogiando os pratos durante o almoço. Lá pelo fim do almoço, Carlos pergunta:

“Semana que vem você vai ao médico olhar o joelho?”

Valentina:

“Que joelho?”

Carlos:

“Seu joelho, que você estava reclamando de dor semana passada.”

Valentina:

“Ah sim! Esqueci disso! Tenho que marcar mesmo o médico. Não me deixe esquecer!”

Carlos ri pelo canto de sua boca. Termina a cerveja e pergunta se está na hora de pedir a conta. Valentina concorda. Pagam e saem logo em seguida. Valentina dirige o carro de volta para casa.

Futebol com Sálvio

Sálvio gravita ao redor do meio campo da quadra de futebol de salão. Nunca se comprometendo completamente ao ataque ou à defesa. Limitado pela sua forma física, sua morosa corrida não distancia-se muito da zona equatorial. Ainda assim, ouve-se dele brados de cobrança “toca!”, “volta!”, “volta!”, “Tem que voltar!”

Depois de sofrer um gol, o seu time recomeça o jogo na posição que Sálvio adquiriu por tempo de uso. O veloz atacante do time toca a bola para iniciar a partida e pede a Sálvio que a devolva na frente. Não ouve. Corre dois vigorosos passos e chuta a bola, com toda sua insignificante força, pela linha fundo. Durante o chute é bonito e um pouco estranho os contornos e formas que adquire a desnuda barriga de Sálvio. Gotas de suor pingam no chão, enquanto ele limpa, sem muito sucesso, as gotas que lhe tomam a testa.

“Porra Sálvio! Toca essa bola!” reclama o atacante.

“Abriu tem que chutar, pô!” insiste Sálvio.

Quando um dos jogadores da linha de trás resolve fazer uma incursão no campo adversário, Sálvio insiste em fazer o papel de pivô. Ao chegar no primeiro defensor adversário, Igor toca a bola para Sálvio, que toca de volta. Igor, ao receber a bola, chuta no meio do gol. O goleiro adversário espalma a bola para frente. A bola sobra no pé de um jogador do time de camisa. Sálvio tenta puxá-lo, mas é impedido por um defensor adversário.

Rapidamente, Sálvio volta à sua posição de origem — logo atrás do jogador adversário que está, agora, na área do time de Sálvio. Igor fica parado no ataque. Outro gol. Os jogadores de fora entram em campo, gritando:

“Acaboooooô!”

Sálvio continua no meio de campo, um dos novos jogadores reclama:

“Sai fora, Sálvio!”

Sálvio:

“Por que eu?”

“Dois gols acaba!”

Sálvio, enquanto conta o número de jogadores do lado de fora, protesta:

“Tem cinco de fora?!”

Ninguém responde; ele termina a contagem e vai para fora de campo. Igor comenta com Sálvio:

“Saindo de férias semana que vem?”

Sálvio desmorona na lateral, do lado de fora do campo:

“Tem que ser, né? Por que você não estava no departamento pessoal na sexta?”

Igor:

“Você não assinou o recebimento das férias! Vai fazer isso na segunda?”

Sálvio:

“Assinei sim, pô! Assinei uma parada lá.”

Igor:

“Você assinou o pedido, mas não o recebimento!”

Sálvio:

“Quando voltar de férias eu assino, então.”

Igor gargalha:

“Boa, zero meia! Depois que voltar de férias não adianta mais, bonitão!”

Sálvio demonstra uma leve inquietação:

“O que acontece se eu não assinar?”

Igor contraria-se:

“Tem que assinar! Se não assinar fica como se você estivesse trabalhando normal. Vai ser como se você tivesse fugido do trabalho.”

Sálvio parece preocupado. Propõe:

“Assina lá para mim?”

Igor balança a cabeça e argumenta:

“Não posso assinar! Quer me ferrar, Sálvio?”

Sálvio:

“Quebra essa para mim, por favor!”

Igor:

“Não dá! Já deu maior merda lá por conta do Renan. Vai lá assinar amanhã. É rapidinho, porra!”

Sálvio fica pensativo. Igor continua:

“Você não tem carro? Passa lá de manhã. Você vai viajar?”

Sálvio, acompanhando a bola com os olhos:

“É… Vou viajar.”

Igor ignora a partida e insiste:

“Que horas é seu voo? Não tem como você ir lá amanhã de manhã?”

Um jogador de linha tampa a visão de Sálvio, que mexe a cabeça para melhorar o ângulo:

“Meu voo é às 3 da tarde. Comprei em uma promoção…”

Igor alivia-se:

“Você indo e voltando de carro dá tempo e sobra! Passa lá amanhã cedo. Dez para as nove eu já vou estar lá!”

Sálvio apenas balança a cabeça. Um chute explode na trave, ele lamenta:

“Uh! Quase!”

Igor explica-se:

“Melhor assim. Não vem com esse negócio de assinar para você. Isso que ferra o país. Essa corrupção! Esses merdas de corruptos em Brasília… A gente tem que fazer diferente!”

Sálvio tira os olhos do jogo, abre um sorriso e comenta:

“Porra Igor, você nem volta pra defesa! Que moral você tem para falar de corrupção?!”

Igor dá uma risada:

“Quem não volta é corrupto?”

Sálvio, rindo:

“Pra caralho! Falta de caráter do cacete!”

Tarde com Gabriel

É a campainha que toca. É Tereza que atende a porta. Pedro não tarda em chegar. Tereza abraça o irmão e Pedro pergunta:

“Boa tarde, Gabriel. Como está?”

Gabriel cumprimenta com aperto de mão o anfitrião. Pedro não hesita em explicar:

“Faça de nossa casa o vosso lar.”

Tereza e Gabriel não fazem reverência ao pedido, pois já iniciaram-se a tagarelar. Gabriel ouve com calma a sua mulher e seu cunhado. Alice chega logo em seguida:

“Titio!”

Abraça o tio. Gabriel não diz nada e nem olha o abraço.

Os cumprimentos se terminam e Gabriel está sentado no sofá da sala. Pedro brinca com a filha; Tereza e Gabriel não param de falar:

“Como está a Juliana, maninho?”

Gabriel:

“A gente separou mesmo, Tê.”

Tereza:

“Que pena! Vocês formavam um belo casal!”

Gabriel:

“Uma pena mesmo, mas não era para ser.”

Tereza não tira os olhos de Gabriel. Ele olha para baixo, corre os olhos do pelo chão até Alice:

“E a minha sobrinha favorita, como está?”

“Ela está uma graça” — Tereza gesticula pela filha — “Vem cá, Alice. Diga para o tio Gabriel o que você quer ser quando crescer.”

Ao lado da mãe, Alice balança todo corpo com vergonha: não.

“Não precisa ter vergonha, Alice. Diga para o titio!”

Pedro, que estava brincando com a filha no chão, agora senta-se na poltrona ao lado do sofá. Ele apenas observa a interação da filha com a mãe. Gabriel está do lado de cá da poltrona, Tereza do lado de lá. Alice olha para Pedro. Gabriel insiste:

“O que você quer ser, Alice? O tio está curioso!”

Pedro, sutilmente, balança a cabeça: sim. Alice diz:

“Eu quero ser bombeira!”

Gabriel:

“Que lindo! Igual ao tio!”

Tereza fica feliz e faz carinho na filha. Pedro comenta:

“Ela é minha pequena aventureira, não é Alice?”

Alice sorri para o pai e corre para o quarto.

“Aonde ela foi?” — pergunta Gabriel.

“Acho que ela foi buscar um desenho que ela fez.” — responde Pedro prontamente.

Alice volta com um desenho de uma estação de bombeiro com ela em frente. Ela usa um capacete vermelho e tem uma mangueira em mãos. Mostra o desenho para Gabriel e para sua mãe. Ambos elogiam suas habilidades artísticas.

A dinâmica permanece a mesma durante o dia. Pedro brinca com a filha. Gabriel e Tereza conversam entre si.

Às nove horas chega o horário de Alice dormir. Pedro diz para ela ir tomar banho. Ele aproveita o tempo para preparar a cama da menina. Tereza continua conversando com o irmão.

Quando Alice está pronta para dormir, Pedro vai com ela até o quarto. Ela se deita. O pai conversa com a filha até que ela durma. Quando a mocinha pega no sono, ele sai vagarosamente do quarto.

Senta-se na poltrona ao lado do sofá e diz:

“Alice já está dormindo.”

Tereza:

“Que bom, Pedro! O maninho estava me contando uma história impressionante! Aconteceu pertinho de onde você trabalha, não foi maninho?”

Gabriel:

“É. Quarta-feira passada um Sandero vermelho atropelou um menino de rua.”

Pedro apenas olha. Tereza pergunta:

“Você viu alguma coisa, 'mor?”

Pedro não diz nada, só balança a cabeça negativamente.

“E o que aconteceu com o menino, maninho?”

Gabriel:

“A ambulância o levou para o hospital. Procuramos os pais, mas não encontramos nada. Ele faleceu ontem pela manhã. Um caso muito triste. Além de tudo, o motorista do Sandero não parou. Ninguém sabe quem foi.”

Tereza:

“Nossa! Não conseguiram pegá-lo?! A polícia está procurando?”

Gabriel:

“Ninguém anotou a placa. Tudo que sabemos é que foi um Sandero vermelho. Algumas testemunhas disseram que tem um adesivo redondo atrás do carro. É muito difícil resolver esses casos.”

Tereza:

“Credo! E não tem vídeo nem nada?”

Gabriel:

“A polícia está procurando por filmagem na região, mas aquela parte da cidade não tem muitas câmeras.”

Tereza:

“Está vendo, 'mor? Eu te falo que lá é perigoso! Ninguém comentou nada no trabalho?”

Pedro, que estava calado até o momento, responde:

“Não estava sabendo de nada.”

Tereza:

“Aonde que esse mundo vai parar, né?”

Pedro:

“É isso que eu falo. O mundo é inóspito. O mundo quer o nosso fim. Por isso temos que viver próximos de quem amamos, temos que proteger a família.”

Gabriel:

“Eu não concordo com isso. Na minha profissão nós vemos o lado ruim do mundo, mas também vemos o lado bonito. É incrível o que as pessoas fazem umas pelas outras. Nesse caso mesmo, ainda que houvesse um babaca no volante, era muito maior o número de pessoas na rua querendo ajudar.”

Tereza:

“Sem contar pessoas como você, né maninho? Vocês arriscam a vida pelos outros.”

Gabriel sorri para irmã com orgulho. Pedro intervém:

“Você pensa isso agora, Gabriel. Não tem família, filho… Depois que tiver você vai ver. Não vai querer correr riscos desnecessários. Não vai querer arriscar a coisa mais preciosa que o mundo te deu em troca de um malabares sem pai nem mãe.”

Gabriel se incomoda com a frase. Pensa um pouco e diz:

“Claro que a vida da minha família é importante. Importantíssima! Porém, somos todos filhos de Deus, Pedro. Todos nós merecemos ajuda. Todos temos nosso lado bom e ruim.”

Pedro:

“Quando você tiver um filho a gente conversa sobre isso.”

Tereza muda a prosa de lado:

“Gente, vou pegar um docinho de leite na cozinha. Querem um cafezinho ou algo assim?”

Gabriel:

“Não precisa, Tereza. Já está ficando tarde. Acho melhor eu ir embora.”

Tereza:

“Não vá ainda! Eu fiz um arroz doce que está ótimo, não está 'mor? Vou trazer para você.”

Gabriel aceita a proposta irrecusável. Come o arroz doce. Depois despede-se do casal e volta para casa. Pedro vai tomar banho primeiro. Em seguida é a vez de Tereza. Eles vão dormir às onze horas.

A segunda-feira

Oito e meia da manhã o carro de Pedro adentra o estacionamento corporativo. Ele para em sua vaga habitual e lê notícias em seu celular. Ele assiste à entrada de cada um dos carros na garagem. Às cinco para nove entra um carro com farol alto ligado. Ofusca os olhos de Pedro, mas ele insiste em olhar o carro enquanto ele passa: um Sandero vermelho.

O carro para a apenas algumas vagas de distância. Pedro observa atentamente enquanto Sálvio deixa o carro. Ele não vê Pedro, entra direto no elevador. Pedro permanece sozinho no carro. Não esconde uma ponta de surpresa.

Liga no celular para um número que encontrou na Internet:

“Bom dia! Gostaria de fazer uma denuncia.”

Ele espera pacientemente na linha. Um pouco inquieto, confere duas vezes a data atual no visor de seu carro. Ele é atendido:

“Alô! Bom dia! Eu gostaria de fazer uma denuncia.”

Ele continua no telefone:

“A empresa se chama B2W.”

Ele se irrita com a resposta do outro lado da linha e insiste:

“Isso! B2W! Eles prometeram que entregariam um estojo de maquiagem infantil em três dias, mas até agora nada! O aniversário da minha filha está chegando e —”

Para de falar abruptamente. Visivelmente irritado, tira o celular do ouvido e liga novamente para o mesmo número:

“Bom dia! Eu quero fazer uma reclamação em respeito à B2W e ao PROCON!”

Alguns andares acima, André e Sálvio conversam. André discorda de Sálvio:

“Nada disso. Foi a DARPA —”

Sálvio interrompe com uma energia raramente vista em seus discursos:

“Não estou falando de DARPA, de Al Gore… Estou falando da base da Internet. A tecnologia base é toda Alien!”

Valentina chega e olha Sálvio diretamente nos olhos. Ele a olha de volta. Ele sabe que ela vai dizer alguma coisa. André percebe a agitação e volta o rosto para a tela de seu computador.

Valentina confronta Sálvio:

“Precisamos conversar. Agora!”

O gorducho responde prontamente:

“Claro, Val! Só que agora não vai dar porque tenho que assinar minhas férias. Espere um pouquinho que já volto para conversarmos.”

Valentina, impaciente, diz:

“Eu vou com você até o DP! Por que você está tirando férias agora?! Muito conveniente, né?”

Sálvio anda o mais depressa que suas curta pernas permitem. Chega no hall de entrada com apenas uma resposta para Valentina:

“Do que você está falando? Eu preciso assinar minhas férias urgentemente! Já estou atrasado para meu voo.”

No hall de entrada há uma bifurcação que leva direto ao departamento pessoal. O outro lado da bifurcação leva ao elevador. Nesse momento Tales chega e, sem perceber o que se passa, cumprimenta Valentina:

“Bom dia, Valentina! Sentimos sua falta no cinema!”

Sálvio aproveita a distração para apressar-se até a mesa de Igor, no departamento pessoal. Valentina incomoda-se com a inconveniência de Tales e responde com um mal educado bom dia. Mesmo assim, perde-se de Sálvio.

Tales fica irritado com o mal trato e pisa duro até sua mesa enquanto Valentina acelera em direção ao departamento pessoal. Lá dentro Sálvio está conversando com Igor e assinando suas férias. Valentina pensa em interromper, mas depois desiste. Depois desiste de desistir e, quando vai abrir a porta do DP, Sálvio sai da sala.

Ela protesta:

“Do que você está fugindo?”

Ele anda com pressa, mas responde com calma:

“Fugindo? Do que você está falando? Estou atrasado para o meu voo. Me dê licença.”

Ela o segue até o elevador de entrada. Sálvio, de forma inédita, resolve usar as escadas para chegar até o estacionamento. Valentina o segue pelas escadas:

“Você está sendo procurado pela policia? Não está? O que você realmente fez naquele dia?”

Sálvio responde:

“Que dia, Valentina? Do que você está falando? Acho que você está me confundindo com alguém!”

Valentina:

“Eu estou falando daquele dia que você falou no refeitório! Você sabe muito bem!”

Ao terminarem de descer as escadas, encontram Pedro esperando pelo elevador. Valentina pergunta a Pedro:

“Você lembra, Pedro! Aquele dia do refeitório. O que o Sálvio falou?”

Pedro aperta algumas vezes o botão que chama o elevador. A porta continua fechada. Ele olha para Valentina com uma cara de raiva e apenas balança a cabeça negativamente. Enquanto isso, Sálvio já está chegando no carro.

Valentina corre até o carro:

“Por que você está tirando férias assim do nada, então?! Se você não fez nada!”

Sálvio entra no carro e o liga. Abaixa o vidro e responde:

“Planejei estas férias há muito tempo, Valentina. Agora tenho que correr para o aeroporto. Quando eu voltar de férias a gente conversa. Fique bem! Beijos!”

Ele vai embora do estacionamento, enquanto Valentina apenas assiste o carro deixando o prédio.

Volta das férias

“Você já andou de jetski?” Sálvio voltara de férias. Estava conversando com Josi em sua mesa no andar acima do que ele trabalha. A copa do mundo já começou e toda a empresa está em clima de festa.

Josi responde:

“Já Sálvio! Muitas vezes. Por que?”

Sálvio:

“Quando vem uma onda, você tem que acelerar para quebrá-la, né?”

Josi:

“Quando tem onda eu prefiro não andar de jetski. Acho perigoso. Se tem alguém atrás da onda você pode acabar atropelando.”

Sálvio pensa um pouco e diz:

“Mas tem lugar que todo mundo sabe que tem jetski, né? A pessoa não devia nadar nesses lugares.”

Um colega de trabalho chama Josi, ela olha, gesticula que espere com a mão e responde a Sálvio:

“Imagino que sim. Sálvio, obrigada pelo presente, mas tenho que ir para uma reunião agora.”

Sálvio:

“Ah sim! Claro! Tenho que ir ver o pessoal lá embaixo também!”

Ele desce de elevador até o seu andar. Anuncia sua chegada com um vibrante:

“Bom dia!”

Todos olham. Alguns acenam com a cabeça, outros com as mãos. Ele chega até a baia de André, tira duas conchas da mochila e anuncia:

“André! Valentina! Aqui estão dois presentinhos para vocês. Estas conchas tem um alto falante dentro, então quando você coloca no ouvido elas fazem o som do oceano!”

André questiona:

“Eu acho que as conchas já fazem o barulho do oceano. Não precisa de alto falante.”

Sálvio parece duvidar:

“Não tem como fazer barulho do oceano sem alto falante! Essas conchas é de um amigo meu da Bahia. São protótipos. Nós vamos vender muitas dessas no próximo verão!”

André coloca no ouvido, mas logo perde o interesse. Valentina olha dentro da concha, procurando o alto falante. Sálvio pergunta:

“Onde está o Pedro?”

André franze a testa e responde:

“Não sei. Faz tempo que não o vejo.”

Valentina interfere:

“Ele saiu da empresa. Já tem quase uma semana!”

André surpreende-se:

“Sério? Por que?”

Valentina sinaliza com os ombros que não sabe. Tales chega na baia de André:

“Sálvio! Quer entrar no bolão do jogo da Alemanha?”

Sálvio responde:

“Ô Tales! Senti sua falta. Calma, trouxe um presentinho para você.” enfia a mão na mochila e tira uma concha. Diz:

“Esta concha faz sons da cidade!”

Tales agradece, pega a concha, mas não consegue colocá-la no ouvido. Ele está com caderno, lápis, dinheiro e carteira nas mãos; além da concha. Ele insiste:

“Quanto vai ser o jogo da Alemanha e Portugal?”

“Quatro a zero para a Alemanha.” responde Sálvio.

Tales pergunta para André sobre o bolão, mas ele recusa até as insistências. Tales não fala com Valentina, mas segue pedindo participação no bolão em outras baias.

Sálvio pergunta a André:

“Você sabe quão longe do litoral a pessoa tem de estar para serem consideradas águas internacionais?”

André responde:

“Não sei. Quanto?”

Sálvio ri:

“Não sei também. Estou querendo descobrir. Vou passar na mesa do Igor para assinar minha volta.”

André concorda com a cabeça e volta seu rosto para a tela. Sálvio continua o tour pela empresa. Valentina coloca a concha de lado, olha para cima e tenta se lembrar porque ela não gosta de Sálvio. Ela não gosta dele porque ele é folgado, vegetariano ou assassino. Só não se lembra de qual.

Comentários

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Stephanie Ribeiro

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Excelente Rafa! Me diverti muito. Ambiente de trabalho é exatamente assim. Muito bom conviver com personalidades diferentes da sua. Já estou esperando pelo próximo!