Carlinha
Pousou no dedo indicador de Carlinha um lindo canarinho. Ninguém sabe onde passarinhos gostam de pousar, mas aquele parecia gostar de dedo. Todo bonitinho, abanava as penas do rabo enquanto cantava. Talvez ele nem goste de dedo assim, só quis agradar Carlinha. Ela passou a tarde toda estendendo o dedo e assoviando para os passarinhos.
Em um movimento fluido, a menina -- que não tinha mais de 7 anos --, deu um soco no pássaro. Caiu no chão sem vida. Pluft! Carlinha agachou-se e olhou bem de perto o passarinho morto. Levantou-se logo em seguida e correu chorando para dentro de casa.
“Mamãe! Mamãe! Matei um passarinho”
“Carlinha, o que aconteceu, minha filha?” disse a mãe com receio, pena, pesar e preocupação. Principalmente preocupação. Não há no mundo uma coisa que você possa fazer que não fará sua mãe preocupada. Ela pode não dizer, não demonstrar. Todavia, é essa a vocação de toda mãe.
“Eu não sabia que ele ia morrer, mamãe.” disse Carlinha enxugando as lágrimas.
“Por que? O que você fez?”
“Eu dei um soco nele.”
“Por que você fez isso, filha?” disse carinhosamente.
“Não sei.”, falou Carla aos soluços, “eu queria ver o que ia acontecer. Ele pousou no meu dedo. Aí eu bati nele. Agora ele tá morto no chão” disse com uma lagrima escorrendo pela bochecha.
“Vai ver ele só machucou. Vamos lá olhar.”
Chegando com a filha no quintal, a mãe verificou que ele estava realmente morto. Sem saber que conselho dar, ela apenas disse com dó:
“A gente não pode fazer isso com os animaizinhos, querida.”
“Eu sei mamãe, foi sem querer!” respondeu chorando.
“Calma. Está bem minha filhinha. Chegou a hora dele. Todo animal morre uma hora mesmo.” consolou enquanto adulava a filha.
Carlinha abraçou forte a mãe e perguntou:
“Até a gente mamãe?”
“Todo mundo, filhinha.”
Carlinha abraçou a mãe mais forte
“Até você?”
“Até eu. Mas isso vai ser daqui a muito tempo. Quando mamãe estiver bem velhinha.”
Carlinha já estava se recuperando do choque. Esfregou o rosto no vestido da mãe, enxugando as lagrimas que ainda persistiam lá. A mãe adulou a cabeça da filha enquanto isso.
“Mamãe, por que a gente morre?”
“Depois de muito tempo. Depois de brincar muito. Depois de fazer muitas coisas. Depois de anos, e anos, e anos, e anos. O nosso coração fica muito, muito cansado. Ele fica tão cansado que um dia ele dorme. Aí a gente também dorme.”
“E o que acontece depois que a gente morre? A gente sonha?”
“Ninguém sabe, minha filha. Cada pessoa acha uma coisa. Você vai ter de descobrir por conta própria o que você vai achar.”
Carlinha soluça com um nó que subiu a garganta e pergunta:
“E o que você acha, mamãe?”
“Eu acho que, depois que morre, a gente não sente mais nada. Não teme mais nada. Não vê mais nada. A gente fica em paz. Para sempre.”
“Mas a gente fica feliz?”
“Não ficamos mais felizes, nem tristes. Sabe quando você dorme só um pouquinho a tarde e não lembra direito do que aconteceu?”
“Então, por que a gente nasce?”
“Eu acho que a gente nasce para poder aproveitar a vida. Para ficar feliz, para ficar triste. Todas essas coisas que a gente não vai poder fazer depois de morrer.”
“Eu queria ser feliz o tempo todo!”
“Você lembra quando você queria muito aquela boneca de porcelana que a vovó te deu?”
“Lembro!”, Carla abriu um sorriso, desabraçou a mãe e fez a cara mais bonitinha do mundo -- a mãe da Carla sempre enfatiza essa última parte quando conta a história.
“Você lembra quando você não tinha? Que ficou pedindo pra vovó? Você não estava tão feliz quanto quando ganhou a boneca, não é?”
“Eu pedia para vovó todo dia!”
“E você lembra que a vovó pediu para você ajudá-la no supermercado? Lembra que, depois de você ajudá-la, a vovó te deu a boneca?”
“Lembro! Foi o melhor dia da vida!”, respondeu entusiasmada.
“Onde está a boneca agora?”
“Não seeei”, disse com uma voz melosa e alongada.
“Você não está mais tão feliz com a boneca agora, né? Agora que você já a tem por vários meses.”
“Ééé...”
“Felicidade, minha filha, é uma mudança. A tristeza também. A gente só repara na mudança. A sua felicidade foi quando você ganhou a boneca. Por isso agora você nem pensa nela mais.”
“Mamãe!” disse a menina agitada.
“O que, minha filha?”
“Posso ir brincar lá fora na rua com os meninos?”
“Claro! Vai lá!”
Carlinha saiu correndo e gritando. A mãe ficou no quintal para providenciar o devido destino do pássaro morto. Estava bem satisfeita consigo mesmo. Mesmo que Carla não tenha entendido muito do que ela falou. A história ficou ótima. Digna de uma excelente mãe.
Sabe o que mais? Mesmo que não tenha sido exatamente assim, é assim que a mãe da Carla conta. Ela tem que se mostrar um pouco para as amigas, né? Afinal, ela já teve todas bonecas que poderia ter tido.
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