Crise de meia idade
Tira ou põe uma década, cheguei à metade da vida. Parece que foi mais. Dizem que daqui para frente fica mais fácil; é só ladeira abaixo. Espero que estejam corretos pois não aguento mais subir.
Aqui, do meu ápice, consigo ver o calcanhar dos pés de quem não tropeçou feito eu. Vejo cabecinhas abaixo — parecem felizes, mas acho que só parecem. O pessoal que subiu para valer sumiu entre as nuvens. De vez em quando espio um pezinho. Não os seguirei. A partir daqui, só desço.
Subir o morro foi difícil. Sinto o peso de duas pedras que carrego nas costas. Estou decidido: não subo mais. Além disso, não vou mais carregar pedra. Descerei rolando junto das que trouxe até aqui.
O ar tem cheiro forte. Perfume, suponho. O chão me puxa. Devo agradecê-lo. Ele sempre soube o caminho. Descerei contigo; aguarde. Não abandono a terra. Cobrirei-me com ela assim que chegar ao pé da montanha.
Não parece uma descida muito agradável. O pessoal do lado de lá está gemendo. Vejo muito cascalho no caminho. Se dou sorte, tropeço e caio cem metros de uma vez. Na descida, tropeçar ajuda.
O chato deste lugar é que eu não vejo ninguém por perto. Ao meu redor só chão e mato. Se ainda houvesse alguém, eu poderia ficar mais um tempo para conversar. Porém, não há motivo para esperar sozinho. Melhor aproveitar que o Sol ainda não se pôs e seguir meu caminho sozinho. Quem sabe não encontro alguém na descida? Apesar de que, às vezes, a gente acha que algumas coisas são gente, mas são pedra em formato de pessoa. Esses enganos me enchem de falta de vontade.
Seis horas da manhã o despertador toca. O sonho e a realidade se parecem. Uma tênue linha de lucidez separam as duas partes. O despertador tenta me lembrar do que é real, mas hoje só tenho olhos para essa montanha.
Sete horas não tenho alternativas. Preciso atender ao chamado do meu despertador. A realidade é o pesadelo com a cruel adição da dor. Seja feita a vontade dos homens. Levanto. Inspirei fundo durante o sono. Prenderei a respiração o dia inteiro, assim evito o cheiro forte de perfume no ar.
Outra terça-feira. Ou é sexta? Sabe-se lá! Tomo meu café. Tomo a condução. Enquanto me desloco, assisto o Sol caminhar comigo. Eu invejo a tranquilidade dele, mas ele deve me invejar também. Para mim faltam apenas trinta e poucos anos, para ele bilhões. Contudo, não me invejará por muito tempo. Ele é parte de mim; em breve serei parte dele.
Chego a um lugar comum. Cheio de gente. Todas apressadas. Nenhuma tem pressa de falar comigo. Melhor assim. Melhor ficar aqui sossegado. Nada jamais aconteceu com quem fica quieto. Nada! Desesperadamente nada!
Uma leve brisa me leva a alma. Em breve brisa ela volta. O nó na garganta, o pranto enrustido: não se preocupe, é normal. Isso que dizem: n-o-r-m-a-l. Ainda posso ser uma produtiva engrenagem improdutiva. Alimento o sistema e o sistema me alimenta. Há no mundo melhor sintonia?
Passa minuto, hora, dia e o mundo acaba de novo. Cada cabeça vai para casa refletir. Algumas se embriagam, outras acham que refletem melhor sóbrias. Em meio à reflexão, esquece-se de dormir. Mais uma vez, o dia seguinte não será um bom amigo. Precisamos improduzir cedo. A máquina ajuda àqueles que chegam cedo. Facilita a gerência.
Já é tarde da noite. Outra segunda-feira se aproxima — ou sexta, sei lá. Não sei onde está o adormecedor. Lembrei! Não tenho! Só tenho o despertador. O adormecedor dizem que faz mal. Precisamos escolher cuidadosamente os venenos da vida. Não podemos ter todos.
O olho está pesado, tal qual o ar. Apesar de que, agora, não sinto perfume algum. Amanhã repenso tudo. Alias, não repenso nada. Só se o horóscopo mandar. Daqui para frente quero ser conhecido como Aquele Moço Ali, Atrás do Bonito e do Lado do Interessante. O Esquisito? Não, o Mais Normal Mesmo. A numerologia diz que é o melhor. Eu também prefiro assim.
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