O portão aberto

“Não achei o que eu estava procurando.”

Roberto disse depois que voltou de Recife. Quem ouvia atento era o Ronaldo. Antes disso Ronaldo perguntou “Como foi de viagem?”. Perguntou apenas porque estavam sozinhos, sentados, calados, na varanda de Donana — a avó. Eles estavam sentados na varanda porque o encontro familiar estava chato. Era sempre assim. Ninguém tinha muito em comum.

Os primos — Roberto e Ronaldo — tinham algo em comum. Não o suficiente para serem amigos, não fossem primos. Entretanto, o suficiente para conversarem sozinhos nesses encontros. A convivência os aproximou e, às vezes, saiam juntos sem nenhum outro familiar.

Era aniversário de Donana. Senhora solitária, mas rodeada de parentes, amigos e colegas. Duas gerações abaixo, Roberto e Ronaldo compartilhavam muito da personalidade dela. Apenas externalizavam de formas diferentes.

Roberto pensava demais, mas nunca se movimentava. Ronaldo andava sempre, mas sempre em círculos. Cada um tinha certeza que o outro não sairia do lugar. Ambos estavam acertando até o momento.

“E o que você procurava?” — perguntou Ronaldo, secretamente pensando “lá vem…”

“Não sei…”

“Aí fica difícil!”

“Apenas sei que não encontrei.”

“Aí meu Deus, Roberto! Larga essa punheta mental!” — Ronaldo não tinha muita paciência para essas conversas mela cueca, como as chamava.

“Você sabe tudo que quer, Ronaldo?”

“Sei que quero um buceta.” — Diante dessa resposta, Roberto perde a linha de pensamento. Ele abre um sorriso sem graça e muda a conversa de direção:

“Sabe, você deveria querer deixar de ter medo de avião.” — Os dois discutiam isso em quase toda conversa. Roberto adorava ouvir o argumento de Ronaldo.

“Que avião, Roberto! Sabe o que você está precisando? Tá precisando é de uma mulher. Uma bem gostosa! De quatro. Daquelas que você vem quente por trás e—”

“Não muda de assunto, Ronaldo. Isso é para não admitir o medo?”

“Medo nada!” — não resiste ao desafio — “Você entra no avião sem saber nem se o piloto sabe pilotar! Não sabe se o mecânico esqueceu uma peça… Tem que confiar em todo mundo! Não confio assim nas pessoas não.”

“Mas Ronaldo, quando você viaja de carro, também tem que confiar nos outros motoristas!”

“Eu que dirijo o meu carro. Se vem um caminhão pra cima de mim, eu estou atento. Posso, ó —” Ronaldo vira um volante invisível — “cair para esquerda” — vira o volante para o outro lado — “ou para direita.”

“Você acha que vai conseguir virar nessa rapidez?”

“Tem mais chance que no avião. Eu nem sei se ele está indo pro lado certo! O piloto erra e vai para o meio do mato. Aí ferrou! Igual aconteceu aquela vez com o Varig 254. Conhece a história?”

“Isso foi uma vez, Ronaldo. Os aviões evoluíram muito desde então. Com a tecnologia de hoje não tem mais como acontecer isso.”

“Pior ainda é confiar no computador! Já viu o tanto que dá pau?! Tá maluco!”

Apesar de toda essa disputa, Ronaldo trabalha com a equipe de terra no aeroporto de Confins. Segundo ele, só mais um motivo para não confiar nas aeronaves. Roberto, apesar de trabalhar como contador em uma multinacional, é apaixonado pela aviação. Costuma ler sobre as últimas tecnologias da aeronáutica quando chega em casa. Com o dinheiro árduo que ganha durante a semana, está pagando um curso para tirar o brevê.

Atualmente, esse é o ponto onde essa conversa termina. Antes de Roberto começar a fazer o curso, Ronaldo falava assim: “Eu trabalho com aviação!” Roberto sempre rebateu do jeito que pôde: não venha com argumento por autoridade, isso não importa, etc. Entretanto, agora que seu primo conhece alguns pilotos, Ronaldo desistiu do velho argumento.

Roberto sempre se achou mais inteligente, culto, letrado, que seu primo. Talvez fosse a maturidade de um ano a mais de vida. Entretanto, Roberto acha que um ano atrás estava, pelo menos, cinco anos à frente de Ronaldo. Ainda assim, os dois parecem discos quebrados:

“Você não pensa no que faz uma pessoa feliz, Ronaldo? Alegria é um período, mas a felicidade plena deve necessitar da tristeza porque—”

Ronaldo interrompe:

“O que me faz feliz são duas negrinhas. Uma do lado da outra. Peladinhas.”

“Hoje você está atacado, hein? Tudo isso é falta da Renata?”

“Não te falei? A gente voltou!”

“De novo? Dessa vez eu achei que ela… Depois que… Ela me falou —”

“Aí estão vocês!” — gritou tia Glorinha, que chegava na varanda pela porta de frente da casa — “Os dois aviadores da família! Eu também preciso de um pouco de ar.”

Nenhum dos dois se atreveu a abrir a boca, pois sabiam que Glorinha não havia terminado de falar. Ela passaria por cima de qualquer voz mais baixa que a dela, ou seja, qualquer voz humana conhecida.

“Também tive que dar um tempo do bafo da Zuzu. Aquilo quando abre a boca sai uma coisa. É uma maresia que vem que parece que é do inferno!” — enfatizou bastante a última palavra — “Nem o capeta aguenta uma coisa dessas.”

Os dois apenas sorriram. Continuaram ouvindo à tia Glorinha:

“Gente, e que calor é esse?! Lá em casa está muito quente. Eu estou colocando compressa gelada na testa para dormir. Eu pego um balde, encho d'água, coloco gelo.” — disse sem economia de gestos — “Aí pego uma toalha. Pode ser qualquer paninho, sabe? Eu uso uma toalha mesmo. Mergulho uns cinco minutinhos, está bom. Depois ó…” — deu um tapa na própria testa — “coloco aqui e deito de olhos fechados. Não dá, né gente? Tomara que São Pedro jogue uma aguinha aqui para a gente.”

Ronaldo arriscou: “Eu —” Glorinha não deixou barato:

“Ronaldo, querido! Me conta! Como está em Confins? Semana passada fui pegar um avião para —” emudeceu. Pasmos, Ronaldo e Roberto olharam ao redor. Alguma tragédia. Sim, tragédia: dois homens armados entravam pelo portão da frente — que estava aberto. No interior o portão fica aberto. Gritavam:

“Mão na cabeça tia! Mão na cabeça zé!”

Um deles ficou do lado de fora com o trio, o outro entrou pela porta da frente. Os dois primos ficaram calados, Glorinha recuperou o folego:

“Moço, não faz nada com a gente não. Pelo amor de Deus! Pode levar dinheiro, carteira…, pode levar tudo! Mas não faz nada com a gente. Por favor!”

O moço, nervoso, não queria papo:

“Cala a boca que senão te encho de pipoco!” — deu um tapa no rosto da tia e manteve a arma apontada contra a cabeça dela. Glorinha desabou a chorar. Em meio a soluços, não resistiu e falou baixinho (para ela):

“Por favor, moço! Por favor!”

Barulhos de tiro. Gritaria. O moço do lado de fora ficou notavelmente preocupado com o barulho que vinha de dentro da casa. Nem deu atenção à Glorinha. Mais barulhos de tiro. Silêncio.

“Aí moço! O que está acontecendo? Por favor!” — choramingou a tia.

O homem de dentro volta correndo com uma bolsa na mão. Grita para o comparsa:

“Vem! Vem!”

“O que a gente faz com esses três?” — perguntou o de fora.

“Vamos embora! Tô cheio de fome.”

O moço de fora ri e fala para os primos e tia:

“Isso é para vocês não dizerem que a fome nunca salvou a vida de ninguém!”

Correu atrás do colega, que já estava saindo pelo portão nesse momento.

Os três olhavam, petrificados, o silêncio vindo da porta da frente. Choramingaram:

“Mamãe…”

“Papai…”

“Zuzu…”

Após segundos de silêncio, um choro agudo de bebê ecoa do interior da casa. Ouve-se o grunhido do porco no quintal. O Sol, com medo, esconde-se atrás de duas pequenas nuvens.

Uma borboleta pousa na janela à direita da porta da casa. O inseto, gentilmente, abre suas as asas e exibe sua colorida pintura.

Entreolham-se. Ronaldo lidera o caminho para dentro da casa. Glorinha e Roberto permanecem do lado de fora — atônitos. Ele percorre o corredor de entrada. Abre, devagarinho, a porta da sala.

“Mamãe!” — Grita Ronaldo, aliviado. Glorinha e Roberto correm para dentro da casa. Da rua, ouve-se muitos gritos de alívio.

O pai de Roberto sai para trancar o portão. Ele foi a última pessoa que saiu da casa naquele dia.

No dia seguinte, o primeiro carro vai embora. Até o final da semana, todos voltariam a suas rotinas. Todavia, Donana não ficou sozinha; à medida que os familiares saiam, entravam os vizinhos para saber notícias. Com todas essas pessoas à sua volta, Donana era solitária apenas em pensamento.

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