Solidão
Diz o homem “Olá.”
Diz a mulher “Oi.”
Diz o garçom “Boa noite.”
Pensa o homem “Não.”
A mulher pensa “Vou querer salmão.”
O garçom pensa “Mais 2 horas...”
“Boa noite.” diz o homem.
Sorriso, diz a mulher.
“Gostariam de pedir as bebidas?” repete o garçom. Trigésima vez naquela noite.
“Uma água.” pede o homem.
“Nada para mim,” chora a mulher.
“O que eu falo?” pensa o homem.
“Não olha pra mim,” pensa a mulher.
O homem corteja “Eu peço o fetuccine frutti di mare. Ótimo.”
“Que esnobe,” pensa a mulher. Fala: “Vou querer o salmão.”
“O que foi que eu fiz?” pensa o homem.
“Já foram atendidos?” pergunta um outro garçom.
Dizem que sim. Esperam. Falam. Comem. Esperam. Falam. Comem. Esperam. Dirigem. Trânsito. Demora. Deitam em camas separadas. Casas separadas. Bairros separados. Já é tarde.
O homem levanta. Bebe água. Dentro da geladeira lê o rótulo de uma lata: solidão. Está escrito “conserva de salmão.”
Pensa na gata. Se mata. Encontrou a solução.
No dia seguinte acorda como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse se matado na noite anterior, puxa o carro. Vai para o trabalho.
Como se ainda fosse vivo, faz seus afazeres diários. Como se tivesse alma, diz bom dia, boa tarde, boa noite. Como se tivesse coragem, pede um aumento. Como se tivesse folego, bebe água.
Liga para um amigo à noite: “alô”. Desiste, mas conversa como se não tivesse desistido. Reclama, como se quisesse reclamar. Ladra, como se fosse morder.
Acorda tarde no dia seguinte. Levanta cedo no próximo. Liga para a mulher do restaurante. Recebe um não.
Leva o carro para o meio da ponte. Desce, corre, salta. Quebra a cabeça no meio da pedra. Como se ainda tivesse cérebro, volta para casa. Como se ainda pensasse, pensa na morte. Como se ainda vivesse, planeja a vida. Tudo que bate no peito é solidão.
Levanta cedinho. Corre na calçada. Pergunta o nome de uma jovem simpática. Trocam carinhos, sorrisos, saliva. Arranca e coloca na mesa seu coração. Coração com frutti di mare, come como se houvesse razão.
Ama, como se tivesse algo no peito. Chora, como se pensasse direito. Deita, desesperado, na cruz de uma esquina em Montevidéu.
Houve tempos em que eu sabia da vida, mas hoje já não sei mais de nada. Só quero saber de ouvir coisa errada. Só quero saber de ver o que não se deve. Só sei fazer o que não se pode. Só sei chorar o leite derramado.
Velejo, bravo e indômito, por águas muito antes navegadas. Encontro um cinzeiro de lata. No fundo, a cinza do que uma vez foi uma chama ardente de um cigarro de palha. Calculo que não apagaste por mal. Apagaste quando chegou ao fim.
Fim que é esse tão longe. Ao mesmo tempo, tão perto que dói. A tristeza que não me deixa sorrir. O sorriso que não me deixa sentir. A alma que não se sente adulada. O corpo que se sente sem alma.
Meia noite gritam desesperados: “tem fogo no saguão!” Nem levanto da cama.
Já é muito tarde para tudo: fogo, água, cinza, tudo.
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